Nos jogos de tabuleiro transformacionais não há vencedores nem perdedores. Os participantes adquirem conhecimentos, desenvolvem habilidades e produzem mudanças de comportamento. Bom para as pessoas, bom para os negócios.
Nos últimos anos, os jogos transformacionais, ou serious games, como são chamados, ganharam espaço nas organizações como um modo de compreender como empresas e funcionários se comportam em relação aos objetivos traçados. O contexto em que essa experiência se dá varia de jogo para jogo, mas todos eles são a representação de uma cena da vida real — e promovem, indiretamente e de forma lúdica, a lucratividade e a sustentabilidade dos negócios.
Foto: Divulgação
No livro Why Games Are Good for Business, de 2016, Helen Routledge ressalta o poder dos serious games para entregar experiências verdadeiramente transformacionais. “Em contraste com os digitais, os jogos de tabuleiro apresentam uma transparência na mecânica
central que os torna mais acessíveis para uma experiência aprofundada”, descreve.
Tudo é simbólico nos jogos. O próprio tabuleiro é o símbolo da vida e do caminho que será trilhado, segundo Margareth Scherschmidt, psicoterapeuta da linha simbólica junguiana com 30 anos de experiência. “E o que ocorre numa partida é uma representação simbólica da forma como agimos perante os fatos da vida”, diz Margareth.
Segundo o psicólogo e filósofo Marcos Adissi, de 45 anos, os jogos acionam memórias afetivas dentro de um espaço seguro e compartilhado, além de proporcionar atenção plena — algo dificílimo hoje. “É preciso desconstruir a ideia de que jogos são coisa de criança. Durante as partidas, ensaiamos possibilidades existenciais, adultos e crianças”, afirma Adissi, cuja dissertação de mestrado pela Coppe-UFRJ, “Jogando e aprendendo a viver”, é um trocadilho com “Vivendo e aprendendo a jogar”, da música de Aldir Blanc, morto neste ano vítima de covid-19.
Os serious games recebem esse nome porque têm um objetivo “sério”, que é provocar mudanças na forma de pensar e de agir. Em outras palavras, são jogos ganha-ganha, e não ganha-perde, como nas versões tradicionais. “Você ganha quando reverte em conhecimento
o que foi vivenciado”, diz Margareth. E, por ter esse caráter “profundo”, as partidas são guiadas por um facilitador credenciado, que confere imparcialidade ao processo.
Olga Balian, de 61 anos, da Tayeta Editora & Consultoria, trouxe o Jogo da Transformação e o FrameWork for Change para o Brasil quando pouco se falava de ferramentas como essas. Criados na comunidade ecológica de Findhorn, na Escócia, nos anos 1970, esses jogos sofreram modificações até chegar à versão atual. São 28 anos facilitando jogos e muitas histórias para contar. “A linguagem do Jogo da Transformação e do FrameWork, sua versão corporativa, é muito rica”, diz Olga, que se tornou referência na área.
Antes de iniciar a partida cria-se um propósito. Em geral, são palavras-chaves como criatividade e comunicação, mas pode ser qualquer tema. “Uso os jogos para direcionamento, na minha empresa e na de meus clientes, porque traz questões que outra atividade não é capaz de trazer”, diz Luiza Ghisi, de 57 anos, da Lghisi Gente. Numa empresa de medicina diagnóstica, o FrameWork foi levado a todo o nível gerencial,
cerca de 250 pessoas, para desenvolver a liderança. “O resultado foi surpreendente: os
insights ocorriam a cada rodada, você via o espanto nas feições”, diz Luiza.
Em outro programa em que Olga atuou com o FrameWork, o tema era inusitado:
o feminino e o masculino no universo organizacional. O principal executivo de um
banco havia reparado que mais de 50% do comitê estava se divorciando e ele mesmo
tinha acabado de se separar. Olga, então, dividiu o trabalho em etapas: primeiro fez jogos
com os gerentes; depois com as esposas e os maridos desses gerentes, sempre em
grupos separados por gênero. “Quando as mulheres foram jogar, a expectativa delas
era altíssima. Estavam habituadas que, após treinamentos, o entusiasmo dos maridos
não durava três dias, mas dessa vez, em três semanas, havia ocorrido uma mudança.”
A neurociência tem uma explicação para isso: nosso cérebro não faz distinção entre
uma simulação e uma experiência real. As histórias nos jogos criam conexões emocionais
que aumentam a retenção da vivência. “A mudança vai depender de como você usará o que ocorreu na partida”, afirma Margareth.
O movimento é importante, senão o jogo — e a vida — não avança. No FreshBiz, sem a colaboração do grupo não é possível evoluir. “Competição é um jogo para amadores; colaboração é para empreendedores”, diz Graziela Merlina, de 47 anos, fundadora
da Apoena, líder no Brasil do FreshBiz Game. Segundo ela, o mindset da competição nos limita; e a colaboração, por outro lado, une talentos e faz a riqueza circular. “O FreshBiz flagra padrões limitantes, permitindo dar um salto de performance.” Como resultado, em vez do medo, prevalece a criatividade; em vez da escassez, há abundância.
Responsável pelos jogos da Points of View no Brasil, Ariolino Andrade, de 53 anos, gosta
de repetir o que ouviu durante uma vivência em pleno deserto em Israel: “São ferramentas para abrir corações e mentes”. As ferramentas são cartas com fotografias e palavras cuja associação pode trazer algo novo para o momento do observador. “Só conseguimos
fazer mudanças quando enxergamos a vida de outra perspectiva”, afirma Andrade.
Toda experiência pode trazer sabedoria. Ou não: podem surgir sentimentos negativos e mecanismos de defesa. Para Alfred Adler, psicólogo contemporâneo a Jung, a resposta a essas dificuldades está no desenvolvimento da cooperação. É o que mostra a visão colaborativa dos jogos: o pensamento coletivo, intrínseco à sobrevivência da humanidade
— e, por extensão, das empresas —, deve prevalecer. Afinal, estamos todos no mesmo jogo.
Fonte: Revista Exame - Setembro 2020
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